"— As
sociedades brasileiras, meus caros discípulos, sofrem hoje e sofrerão ainda,
por espaço de tempo que estará ao seu alcance o dilatar
ou reprimir, as consequências das iniquidades que em pleno domínio da era
cristã permitiram fossem cometidas em seu seio. Refiro-me, como bem
percebeis, à escravização de seres humanos, tratados por elas com maior rigor
do que o eram os próprios animais inferiores, para a extração de posses e
haveres que lhes facultassem o gozo e o império das paixões! Se
não foi crime individual e sim coletivo, será a coletividade que expiará e
reparará o grande opróbrio, o grande martírio infligido a uma raça
carecedora do amparo fraternal da civilização cristã, a fim de que,
por sua vez, também se gloriasse às alvíssaras da educação fornecida
através da Boa Nova do Reino de Deus! Sob os céus assinalados pelo
símbolo augusto da Iniciação como do Cristianismo — a
Cruz —, ressoam ainda, ecoando aflitivamente na Espiritualidade, os brados
angustiosos de milhares de corações torturados que durante o dobar dos
decênios se compungiram ante a infâmia de que eram vítimas! Não deixaram
de repercutir ainda nas ondas delicadas do éter, onde se assentam as
esferas de proteção às sociedades humanas, os rumores trágicos dos látegos
sanhudos dos capatazes diabólicos, a vergastarem homens e mulheres indefesos,
cujas lágrimas, recolhidas uma a uma pela Incorruptível Justiça do Todo Poderoso,
foram, por lei, espalhadas, em seguida, sobre essa mesma coletividade
criminosa, para que, por sua vez, as sorvesse em pelejas posteriores, a se
purificarem do acervo de maldades e infâmias praticadas! Por isso, eis a
grande Pátria sul-americana debatendo-se contra problemas complexos, suas
sociedades em pelejas dolorosas consigo próprias, vitimadas por um acúmulo de
agravos que as desorientam, ocupando postos mais bem bafejados aqueles que
ontem se viram oprimidos, e vergados sob aflições coletivas, relegados à
indiferença das classes favorecidas, os orgulhosos e imprevidentes do passado,
os quais a tempo não se abeberaram dos exemplos do Celeste Enviado, renegando a
cordura da fraternidade para com os seus semelhantes, a cautela de semearem
amor a fim de colherem misericórdia no dia do Supremo Juízo! E
assim prosseguirão até que a Voz Celeste dos Missionários do Senhor as oriente
para finalidade apaziguadora, no trabalho sublime da reconciliação individual
por amor do Cristo de Deus! (...) Sabei que entre os escravos que, sob os céus
do Cruzeiro Sublime, choraram, vergados sob o trabalho excessivo,
famintos, rotos, doentes, tristes, saudosos, desesperados frente à opressão, à
fadiga, à maldade, nem todos traziam os característicos íntimos da
inferioridade, como bastas vezes foi comprovado por testemunhas idôneas;
nem todos apresentavam caracteres primitivos! Grandes falanges de romanos
ilustres, do império dos Césares; de patrícios orgulhosos, de guerreiros
altivos, autoridades das hostes de Diocleciano, como de Adriano e Maxêncio,
dolorosamente arrependidas das monstruosas séries de arbitrariedades cometidas
em nome da Força e do Poder contra pacíficos adeptos do Cordeiro
Imaculado, pediram reencarnações na África infeliz e desolada, a fim de
testemunharem novos propósitos ao contato de expiações decisivas,
fustigando, assim, o desmedido orgulho que a raça poderosa dos romanos
adquirira com as mentirosas glórias do extermínio da dignidade e dos direitos
alheios! Suplicaram, ainda e sempre corajosos e fortes, novas
conquistas! Mas, agora, nas pelejas contra si próprios, no combate
ao orgulho daninho que os perdera! Suplicaram disfarce carnal qual
armadura redentora, em envoltórios negros, onde peadas fossem suas
possibilidades de reação, e arvorada em suas consciências a branca bandeira da
paz, flâmula augusta concedida pela reparação do mal! E os escravizadores
de tantos povos e tantas gerações dignas! Os desumanos senhores do mundo
terráqueo, que gargalhavam enquanto gemiam os oprimidos! Que faziam seus
regalos sobre o martírio e o sangue inocente dos cristãos, expungiram
sob o cativeiro africano a mancha que lhes enodoava o Espírito!
Daí, meus
discípulos queridos, a doce, mesmo sublime resignação dessa raça africana
digna, por todos os motivos, da nossa admiração e do nosso respeito, a
passividade heroica que nem sempre se estribou na ignorância e na
incapacidade oriunda de um estado inferior, mas também no desejo ardente e
sublime da própria reabilitação espiritual!”
Palavras do orientador espiritual Epaminondas de Vigo no livro “Memórias de um
suicida” de Camilo Cândido Botelho, psicografia de Yvonne A. Pereira.