A pandemia, que se instalou mundialmente, a partir de
março de 2020, nos mostrou o quanto ainda nós, os seres humanos, necessitamos
burilar os nossos sentimentos.
Alguns nos mostramos angustiados face à perspectiva das
graves consequências para nossa saúde, e, inclusive, a perspectiva de perder a
vida física.
O mundo mergulhou em um panorama angustiante, na medida
em que os dias se foram sucedendo, e as estatísticas nos traziam informações
alarmantes de crescente número de hospitais superlotados e mortes pela
Covid-19.
Quando os recursos são escassos e deles depende a
sobrevivência, é cada um por si e Deus por todos, mas preferencialmente que
Deus comece cuidando de mim, pensamos.
E, de forma surpreendente, muitos de nós nos sentimos
merecedores de privilégios, o que nos leva a reprisarmos as lições dos
Evangelhos.
Jesus, o Mestre Sublime, ensinava pelo método pedagógico
de figuras de linguagem. Ensinava por parábolas, alegorias, referências e
valores que significassem algo para o povo daquela época, alcançando os mais
simples e os mais cultos. Mas, Ele ensinava, principalmente, pelos Seus
exemplos, demonstrando o que afirmava.
Analisando algumas passagens dos Evangelhos, encontramos
exemplos e reflexões relativas aos fatos acima mencionados. Associando a
Parábola do Filho Pródigo, com as do Festim de Bodas e dos Trabalhadores da
Última Hora, podemos achar semelhanças que trazem luz às questões relacionadas.
Podemos enfocar o comportamento do irmão mais velho do
filho pródigo, quando se mostra contrariado ao ver o tratamento especial dado
ao irmão, no seu retorno ao ambiente doméstico, após ter deixado a família para
ir consumir as suas economias nos prazeres do mundo. Indaguemo-nos quantas
vezes nos colocamos na posição de quem cobra reconhecimentos. Esperamos
elogios, destaque, títulos, salário diferenciado, por vezes, somente por termos
cumprido nosso dever, aquilo que é de nossa responsabilidade. Parece que, de
forma inconsciente, buscamos privilégios.
Mas afinal, o que devemos entender como um privilégio? O
dicionário nos dá alguns significados: vantagem, ou regalia, favores válidos
apenas para um indivíduo ou um grupo, em detrimento da maioria. E os sinônimos:
distinção, garantia. Porém, são os antônimos que chamam mais a atenção:
desvantagem, inferioridade, obstáculo, empecilho e prejuízo. Fácil concluir que
se trata de uma palavra com muitas aplicações, mas que nos colocam como que à
parte do todo.
Entretanto, de onde vem essa busca inconsciente pelos
privilégios?
Allan Kardec, em O livro dos Espíritos¹, expõe sobre o
instinto animal como sendo um mecanismo natural predominante naqueles que
conhecemos como seres irracionais, que não têm consciência de si e não gozam do
livre-arbítrio. Justamente por não terem o livre-arbítrio, são compelidos a
obedecer, sem consciência e sem liberdade, às leis da natureza, aplicando suas
inteligências limitadas na busca de vantagens de sobrevivência e reprodução.
Para eles, se torna fundamental a identificação de melhores locais e abrigos,
de ferramentas que lhes facilitem os serviços, materiais que os agasalhem,
enfim, tudo que lhes traga conforto e segurança. O próprio agrupamento social
torna-se um dos fatores que lhes garantem uma melhor condição da perpetuação da
espécie. Naturalmente, também se tornam fatores de apego, de garantias e de
manutenção aos quais se fixam.
Como Espíritos encarnados, providos de raciocínio,
capacidade de abstração, consciência de si e livre-arbítrio, é comum
esquecermos dessas influências naturais de nosso organismo biológico, tendendo
ainda a humanizar as influências do instinto, nos apegando a privilégios da
condição ambiental, sem nos darmos conta de que estamos reagindo como os nossos
irmãos do degrau evolutivo inferior.
Não atentando para nossa realidade espiritual,
valorizamos demasiadamente tudo que acreditamos ser nosso: a família, marido,
esposa, filhos, o sobrenome, o local de nascimento, a beleza, a cor da pele ou
dos cabelos, nossas habilidades e talentos, nosso grau de escolaridade, as
posses, residência, carro, roupas, o grupo de amigos e posição social, o time,
ideologia socioeconômica, os cargos, até mesmo a religião. E são todas
condições passageiras, nesta encarnação.
Outro enfoque que podemos dar à palavra privilégio, é
quando nos referimos ao destino. Ter ou não ter parece significar sorte ou
azar, felicidade ou infelicidade, ventura ou desventura. Ou seja, privilegiados
seriam os sortudos, os venturosos e felizes. Os demais seriam os azarados,
desventurados, prejudicados e infelizes.
Interpretação equivocada em todos os aspectos.
Acreditar em privilégio como algum tipo de favorecimento
a alguns poucos, é desconfiar que Deus não é soberanamente bom e justo. Se
assim O fosse, ficaria ferida a equidade de Suas Leis Divinas e Naturais².
Ainda na análise da Parábola do Filho Pródigo,
verificamos que a busca por privilégios nos afasta do caminho do bem e provoca
conflitos entre irmãos. O privilégio segrega, censura, exclui, ilude,
envaidece, apaixona, escraviza e, como consequência, gera sofrimento, devido
aos apegos inconscientes.
Como o irmão mais velho, nós, às vezes, reivindicamos o
privilégio de sermos aceitos como somos, mas nem sempre aceitamos os outros
como são. Um exemplo é que combatemos a intolerância, sendo intolerantes com os
intolerantes. Ou seja, combatemos a pessoa pela qual o mal se expressa, agindo
de igual forma.
Jesus não privilegiava, nem se colocava como
privilegiado. Não diferenciava a quem iria acolher, recebendo a todos os que O
buscavam. Não escolheu perfeitos para Seu colegiado. Pedagogicamente, estavam
ali os principais perfis de personalidade, os exemplos ideais para nos
identificarmos e estudarmos. Os apóstolos tiveram um árduo trabalho pessoal, que
os levou aos maiores suplícios para cumprirem suas missões.
Ao ensinar a oração do Pai Nosso, Jesus propõe:
Livrai-nos do mal, mas é do mal que ainda há em nós: o orgulho, a vaidade, o
egoísmo.
Jesus, o Cristo (do grego), ou o Messias (do hebraico),
que significa o Ungido, ou Designado por Deus, se confirmou por ser o inverso
do ser privilegiado ou do favorecido, pelo que nos foi oferecido como Modelo e
Guia3. Ele se fez homem, nos mostrando que não existem privilegiados
na Criação, que todos somos iguais perante Deus e que servi-Lo é a melhor obra
de uma vida.
A Justiça Divina se faz quando Deus proporciona, pelo
mecanismo da reencarnação, a oportunidade de resgate das dívidas a todos os
Seus filhos.
Qualquer pai ou mãe se enche de felicidade quando veem o
filho equivocado retornando ao equilíbrio, ao caminho reto do bem, para a
segurança e para a paz. Essa a alegria demonstrada pelo pai ao receber o filho
pródigo.
Quanto ao irmão mais velho não percebeu o fato de que
estando na Casa do Pai, devia lhe ser suficiente para viver a felicidade.
O Espírito André Luiz4 nos orienta acerca dos privilégios de sermos cristãos:
Semear com o Cristo, desapegando-nos dos resultados. Encontrar irmãos em toda
parte. Cultivar o prazer de ser útil. Santificar o mal. Amparar com sinceridade
os que erram. Perseverar no bem até o fim.
Portanto, com humildade e perseverança, avaliemo-nos e
nos lapidemos, progredindo sempre. Busquemos Jesus, aprendamos com Jesus.
Referências:
1 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro:
FEB, 1974. pt. 3, cap. V.
2 Op. cit. pt. 3, cap. III, VII,
IX, X e XI.
3 Op. cit. pt. 3, cap. I, q. 625.
4 XAVIER, Francisco Cândido. Agenda cristã. Pelo Espírito
André Luiz. Rio de Janeiro: FEB, 1974. cap. 3
Marco Antônio Silva - Vice-presidente da 12ª União
Regional Espírita do Paraná –
Fonte: Jornal Mundo Espírita – julho/2021
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