sábado, 19 de junho de 2021

Em paz e paciência

 


Quando te rendes à revolta e à tristeza e varas algum tempo sem olhos para contemplar a Natureza, sem ouvidos para escutar o trilo dos pássaros e sem tato para sentir, num aperto de mão, as palmas calosas dos prisioneiros da adversidade, perdes a eficiência pessoal na ação cotidiana por te distanciares da realidade fundamental. É aí, não raro, que estrepita a insatisfação rouquejante e se desenfreia a violência explosiva em forma de cólera.

E quando o nosso coração intumescido cabriola ao ritmo espasmódico da cólera, resvalamos invariavelmente na voragem da obsessão, seja obsessão para cinco minutos, cinco horas, cinco dias ou cinco anos.

Existem a cólera convulsiva e gritante e a cólera íntima e surda.

Ambas, definindo causas de efeitos diversos, por trás de outros acontecimentos, têm reconduzido, antes da hora demarcada, multidões de Espíritos encarnados à Espiritualidade, através de mortes repentinas e inexplicadas, crises cardíacas e nervosas, paralisias e mudezes, acidentes e delitos de toda ordem.

Ninguém renasce na carne para revestir-se de sombras, e a morte é a ressuscitadora das culpas mais disfarçadas pelas aparências do homem ou mais absconsas nas profundezas do espírito.

Por isso, ante as catástrofes da consciência geradas nos desvarios coléricos, vemos fardões brasonados a se transfigurarem em armaduras ignescentes; coroas, cujas pedrarias espelharam frontes outrora respeitáveis, se tornarem espinhos de tortura; colares a se entremostrarem baraços asfixiantes; medalhas que enfeitaram antigos peitos orgulhosos a se exibirem quais ferretes queimantes; luvas que fulgiram no comando de legiões transformarem-se, trágicas, em manoplas de fogo, e anéis que rebrilharam entre dedos aristocráticos se metamorfosearem, medonhos, em brasas vivas...

Horresco referens! O próprio Dante não conseguiria dizer as repercussões do mal nos vales do horror.

Cólera! Por essa ebriez de loucura, muitos de nós temos experimentado e milhares experimentam, no imo do próprio ser, as comichões endoidecedoras do remorso.

Nela observamos, no sangue efervescente da tez, nas expressões contorcidas do rosto, nas trepidações nevróticas das mãos e nas descargas terríveis da palavra desgovernada, a volta da personalidade à zona inferior do espírito, aos porões da alma, ao fragor dos instintos tempestuados.

Para ela, a nossa vigilância e a nossa prece.

Semelhante expulsão do bom-senso carreia apenas prejuízos de estarrecer. Ela, em si, humilha e ridiculariza muito mais a criatura do que qualquer pretexto invocado para motivá-la.

Transporta as cruzes pequeninas das dificuldades de cada dia, em paz e paciência.

Desenruga a face nos sorrisos de bondade constante.

Reprime o gesto de precipitação e abençoa sempre.

Mergulha o próprio pensamento no pensamento cintilante da atualidade espírita e, se contrariado, perdoa... se perseguido, perdoa... se humilhado, perdoa... para compores o clima cada vez mais puro da confraternidade entre os homens, com esforços e lutas, serviços desinteressados e iniciativas redentoras, junto aos Vanguardeiros da Verdade e do Amor.

Manuel Quintão / Waldo Vieira – Livro: Seareiros de volta

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