Quando te rendes à revolta e à tristeza e varas algum
tempo sem olhos para contemplar a Natureza, sem ouvidos para escutar o trilo
dos pássaros e sem tato para sentir, num aperto de mão, as palmas calosas dos
prisioneiros da adversidade, perdes a eficiência pessoal na ação cotidiana por
te distanciares da realidade fundamental. É aí, não raro, que estrepita a
insatisfação rouquejante e se desenfreia a violência explosiva em forma de
cólera.
E quando o nosso coração intumescido cabriola ao ritmo
espasmódico da cólera, resvalamos invariavelmente na voragem da obsessão, seja
obsessão para cinco minutos, cinco horas, cinco dias ou cinco anos.
Existem a cólera convulsiva e gritante e a cólera íntima e
surda.
Ambas, definindo causas de efeitos diversos, por trás de
outros acontecimentos, têm reconduzido, antes da hora demarcada, multidões de
Espíritos encarnados à Espiritualidade, através de mortes repentinas e
inexplicadas, crises cardíacas e nervosas, paralisias e mudezes, acidentes e
delitos de toda ordem.
Ninguém renasce na carne para revestir-se de sombras, e a
morte é a ressuscitadora das culpas mais disfarçadas pelas aparências do homem
ou mais absconsas nas profundezas do espírito.
Por isso, ante as catástrofes da consciência geradas nos
desvarios coléricos, vemos fardões brasonados a se transfigurarem em armaduras
ignescentes; coroas, cujas pedrarias espelharam frontes outrora respeitáveis,
se tornarem espinhos de tortura; colares a se entremostrarem baraços
asfixiantes; medalhas que enfeitaram antigos peitos orgulhosos a se exibirem
quais ferretes queimantes; luvas que fulgiram no comando de legiões
transformarem-se, trágicas, em manoplas de fogo, e anéis que rebrilharam entre
dedos aristocráticos se metamorfosearem, medonhos, em brasas vivas...
Horresco referens!
O próprio Dante não conseguiria dizer as repercussões do mal nos vales do
horror.
Cólera! Por essa ebriez de loucura, muitos de nós temos
experimentado e milhares experimentam, no imo do próprio ser, as comichões endoidecedoras
do remorso.
Nela observamos, no sangue efervescente da tez, nas
expressões contorcidas do rosto, nas trepidações nevróticas das mãos e nas
descargas terríveis da palavra desgovernada, a volta da personalidade à zona
inferior do espírito, aos porões da alma, ao fragor dos instintos tempestuados.
Para ela, a nossa vigilância e a nossa prece.
Semelhante expulsão do bom-senso carreia apenas prejuízos
de estarrecer. Ela, em si, humilha e ridiculariza muito mais a criatura do que
qualquer pretexto invocado para motivá-la.
Transporta as cruzes pequeninas das dificuldades de cada
dia, em paz e paciência.
Desenruga a face nos sorrisos de bondade constante.
Reprime o gesto de precipitação e abençoa sempre.
Mergulha o próprio pensamento no pensamento cintilante da
atualidade espírita e, se contrariado, perdoa... se perseguido, perdoa... se
humilhado, perdoa... para compores o clima cada vez mais puro da
confraternidade entre os homens, com esforços e lutas, serviços desinteressados
e iniciativas redentoras, junto aos Vanguardeiros da Verdade e do Amor.
Manuel Quintão / Waldo Vieira – Livro: Seareiros de volta
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