"Bem-aventurados os humildes - afirmou o Divino Mestre
porque deles é o reino dos céus". E ainda: "Aquele que se humilha,
será exaltado, e o que se exalta será humilhado". A exaltação do humilde é
a glória de Deus; e a que maior nível poderia o homem aspirar, e que maior
prêmio lhe poderia ser concedido? A humildade do Espírito condu-lo às elevadas
regiões do Incognoscível; a exaltação do seu próprio "eu", por suas
forças mesmas, em arremesso de soberbia, lança-o, pelo contrário, às
"trevas exteriores", aos abismos negregosos da degradação. Por mais
estranho que pareça, é assim que se dá, e deste modo, à força de querer
exaltar-se, por sobrelevar-se aos
demais, desprezando-os, o homem cada vez mais se atasca no lodo que produzem os
pés a castigar a terra; e, em breve, essa argamassa o afoga, quando esperava
ele alçar-se e construir um castelo em tão frouxa e inconsistente base.
Não há de ser assim, portanto. Não será a matéria pesada que
se eleve, mas essa outra que, sublimada, se alcandore nos espaços; e por ser
verdade que a matéria atrai a matéria, tais sejam suas naturezas haverá atração
para o inferno das sombras ou para o céu da luz. O que parecia, pois,
incompreensível absurdo, é a consequência lógica da lei da atração universal,
em toda a sua pujança e amplitude. "Quem se humilhar será exaltado" é
conceito profundo que importa compreender, por isso mesmo, com simplicidade e
que não entendem os soberbos, os que impam de orgulho, os que não enxergam senão
o seu mundo - que é, afinal, sua mísera pessoa; é natural corolário, ou melhor,
inalienável parte do princípio único e eterno que rege a tudo quanto existe.
É lídima consequência dessa norma inabalável que os convictos
de sua sabedoria nada possam entender do muito que ignorem; estando consigo
mesmo satisfeitos, nada mais perscrutam; tudo pretendendo saber, nada mais lhes
interessa, e a razão de tudo a encontram no angusto círculo que se criaram,
fugindo ao contato do mundo exterior, onde existe realmente a razão de todas as
coisas. Nem há o mundo de se amoldar a tão ridícula fôrma, senão que há o homem
de fazer para si o molde que se ajuste à fôrma geral.
As forças, que imagina esse homem cheio de vaidade ter criado,
não só incapazes são de levá-lo à compreensão da ordem universal, mas também
mais e mais o agrilhoam num cárcere voluntário. Procurando exaltar-se,
encontrará quem lhe diga: "Muda-te para o último lugar, pois outro conviva
existe mais digno do que tu, e a esse quero conceder o lugar de honra". E
muito admirado fica de que haja alguém que lhe seja superior; e inflama-se de
cólera, julgando-se ofendido, por não só não lhe apreciarem os méritos, senão
também por o olharem de cima para baixo.
De que teria sido isto resultado? Apenas dum falso juízo a seu
próprio respeito; e a consequência fatal será sofrer o exaltado a admoestação
humilhante, que bem devera ter evitado. Por que, então - perguntará - aquele obscuro
conviva, de cuja presença ele nem se dera conta há de ocupar o lugar de honra?
Pois ele se olha cheio de merecimentos, crê-se de todos conhecido pretende as
homenagens de toda a gente; e aquele, que veio sem estardalhaço, que todo o
tempo, antes do banquete, se sentou a um canto da sala; de quem ele jamais
ouvira falar – aquele é que mereça as honras da noite, enquanto ele é
degradado, como um verme desprezível, digno de escárnio? De que lhe valeram -
continua - todos os esforços por sobressair da massa ignara, lutando por
enriquecer-se de saber, buscando um nível donde pudesse rir da estulta
populaça, enchendo-se de vento por escapar às emanações deletérias do charco,
onde coleiam répteis imundos? Atiram-lhe à face essa mesma lama, cujo afrontoso
contato ele tanto evitara! Fazem-no descer ao mesmo degrau, de onde pensara que
viera, vituperando-lhe os brios! Mas, ai, é que nunca deixara a lama, nem
jamais se movera do primeiro degrau! Nada mais fizera senão acomodar-se à vasa,
a qual, já por fim, transformara, por autossugestão, num jardim florido; e,
ainda, numa verdadeira ilusão de sentidos deformados, pensara realizado o sonho
de voltejar acima de si mesmo...
Não! Decerto não serão tais forças, oriundas do orgulho e da
vaidade, que exalcem o indivíduo às regiões que sonha. Da mesma forma que a
pesada névoa da manhã desce do céu aos montes e se imiscui nos vales que ainda modorram,
subindo e, por fim, desfazendo-se ao toque mágico do raio do Sol, assim também
tem o homem de receber o toque duma luz que o sublime, carreando-o muito acima
dos vapores duma atmosfera adensada. Por sua própria natureza, as névoas não
transpõem a altura das nuvens; mas, de essência diversa, o Espírito se elevará
a regiões jamais cogitadas, tangido por força dessa energia superior que demora
muito além do astro central de nosso sistema.
Essa, a real exaltação de quem não dispõe de forças, mas
espera-as duma Fonte capaz de sublimá-lo; e quanto mais humilde se faça, tanto
mais alto se eleva, pois, é do vale que sobe o nevoeiro, e é esse nevoeiro que
se transforma em nuvens, e são essas nuvens a bênção dos Céus, nas chuvas que
dessedentam.
Correm, humildes, os ribeiros, e glorificam o Senhor, a cantar
entre as pedras, tão humildes quanto as águas modestas; mas são essas águas uma
potência, de que se utiliza o homem para seu sustento. Humildes e ocultas são
as raízes, sem as quais, entretanto, não se erigem os troncos, não despontam as
folhas, não se enfloram as ramagens - ainda feridas pelos meigos e vivificantes
raios do nosso foco material de luz e de calor. Águas e raízes trabalham à
sombra de sua santa humildade, enaltecendo-se por isso mesmo que enaltecem a
Forca da qual recoltam forças. Não pretendem mais alto posto, justamente porque
acreditam já lhes ser muito ser parte do grande Todo, essa realidade que, só
ela, é efetivamente grande. Realidade é essa, com efeito, e tudo o mais é
jactância. Quanto maior a pedra, tanto mais se afunda no atoleiro; torne-se ela
permeável ao ar, e flutuará no aguaçal. Quanto mais o homem se encharque da
bazófia mundana, tanto mais preso se achará à grosseira matéria desse mundo: permita
que se lhe infiltrem os fluidos celestes, e com eles subirá, exaltando-se aos
olhos do Senhor. Enquanto, porém, se esforçar por crescer aos olhos dos homens,
continuará pequeno e cada vez menor; pois os homens buscarão, antes, esmagá-lo
e carregá-lo de seus fluidos pesados.
Por isto disse o Mestre: "Bem-aventurados os humildes,
porque deles é o reino dos céus".
Humilhou-se ele mesmo, sofrendo o que ninguém pudera sofrer, podendo,
com um só golpe de sua enorme vontade, exterminar seus algozes; mas humilhou-se,
para ascender, no termo de seu suplício, aos Céus, donde viera para esse
exemplo vivo de humildade. Desceram os primeiros cristãos aos circos do
sacrifício, padeceram como se nada pudessem, tendo, - no entanto, ao lado o
exército invisível do Senhor, o qual poderia ajudá-los desbaratando-lhes todos
os inimigos; tudo viveram, para uma vida maior, numa atitude excelsa de
encantadora humilhação. Humilhou-se o
publicano, que, orando, sem ousar levantar os olhos, exclamou: "O' Deus,
sê benevolente comigo, pecador", e do qual disse o Nazareno:
"Digo-vos que este desceu justificado para sua casa"; ao passo que o fariseu,
ao lado, dizendo: "O' Deus, graças te dou por não ser como os demais
homens, que são ladrões, injustos, adúlteros, nem ainda como este
publicano", recebeu a reprovação do Messias. Exaltamo-nos toda vez que nos
recolhemos à nossa humildade; somos humilhados sempre que vivemos para nossa
exaltação.
A muitos repugna o humilhar-se - afirmou Kardec - à vista,
mesmo, do juízo do mundo, que os impede de fazê-lo, ainda que o quisessem;
baste-nos, porém, pensar em que a cada passo nos humilhamos, em mil ocorrências
da vida diária. São esses nadas que nos vão polindo, como as águas correntes
vão desbastando as arestas das pedras, transformando estas em seixos rolados,
em areia fina, em pó impalpável, que rodopia no ar. Humilhamo-nos, sem querer e
sem o sentir, sob o peso – não o peso estulto da vanglória, mas da Lei Divina,
que ampara os humildes para dar-lhes o lugar reservado aos eleitos dos Céus.
É mister, contudo, ainda mais: o domínio do próprio íntimo
naturalmente rebelde, sempre disposto a irrefletida reação aos golpes do que o
homem julga da adversidade. Cumpre esgotar o cálice da amargura, sorvendo-o
gota a gota, que abrasa e parece destruir, fibra a fibra, a alma atormentada; o
cáustico é, porém, o remédio desse Médico de todos nós, e de sua penosa, mas
salutar ação resultará novo tecido, com que se eleve o Espírito aos páramos de
seu real objetivo.
Se do Mestre somos seguidores, imitemo-lo; se lhe somos
discípulos, obedeçamos-lhe; humilhou-se, para exaltar-se: façamos nós o mesmo.
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