Porque perseverem, no mundo, as separações
discriminativas da sociedade, isolando as classes e as raças humanas e formando
grupos infelizes; porque o abuso do poder propicie a subtração das liberdades e
dos direitos humanos; porque o homem continue escravo do homem e as conjunturas
econômicas respondam pela miséria das massas; porque o obscurantismo a respeito
da cultura real domine verdadeiras multidões e o acesso às escolas que libertam
e burilam o pensamento constitua um privilégio para as minorias dominantes,
devemo-nos empenhar em esforço hercúleo para mudar as estruturas vigentes.
Enquanto a dor física desgaste a alma, ou os problemas psíquicos
gerem enfermidades orgânicas, ou as conjunturas emocionais produzam distúrbios
na economia espiritual dos homens; enquanto a indiferença dos ricos marginalize
o sofrimento dos pobres e o menor esforço receba estipêndios vultosos num
atentado ao sacrifício das classes trabalhadoras; enquanto a morte pela fome
dizime centenas de milhões de vidas ou apenas uma vida, o homem necessita
modificar a forma de comportar-se, na Terra, ampliando os recursos da
solidariedade e do auxílio fraterno.
Viceje o vício, que ceifa a juventude e entenebrece a
vida; predomine a corrupção, que envilece a criatura; permaneçam os promotores
da degradação dos costumes; assente-se o triunfo nos pântanos da vergonha
moral; prospere a injustiça, mascarada de direito; reinem a violência e a
agressividade, atestando a situação de primitivismo e semibarbárie da civilização,
faz-se imprescindível educar o ser humano e conscientizá-lo das superiores
finalidades da sua vilegiatura no curto período do trânsito somático.
Desde que o egoísmo tenha prioridade no relacionamento entre
os homens em face do êxito da intriga e da calúnia bem forjadas; diante da
traição que se mascara de amizade; frente ao suborno da dignidade e da
consciência, na disputa dos valores de monta insignificante, porque mui
passageiros; perante a vitória da impunidade, da delinquência de qualquer espécie,
a real cultura não se pode entorpecer pelos vapores do adesismo de frutos
apodrecidos, mas levantar-se para profligar o abuso e exalçar as conquistas do
bem, do verdadeiro e do belo.
Como ainda predomine o comércio de vidas, nos bordéis da licenciosidade
e nos escritórios de luxo, que vendem "imagens" ao público ávido de
sensações; desde que permanece o tráfico de drogas e de alucinógenos,
enlouquecendo dezenas de milhões de vidas jovens e aniquilando-as sob os
disfarces da insensatez e do prazer; porque sobreviva a chantagem moral e a
financeira e a submissão indigna faça parte da metodologia de situações vantajosas,
eleitas pelo equívoco dos aproveitadores, é justo que o silêncio acumpliciador
das mentes e caracteres honrados seja substituído pelo verbo quente e pela ação
repulsiva ao estado de decomposição moral em que se encontra a quase totalidade
do organismo social.
A quietação do homem justo diante do disparate do crime é
conivência inconsciente para com a delinquência.
A acomodação da dignidade responde pela prevalência da desordem.
A imoralidade não espera a anuência da virtude para assentar
o seu quartel, antes impõe-se, chocante e intempestiva, produzindo, pela
violência dos costumes, uma aceitação a princípio tímida e depois aplaudida.
Justo que os contornos da honra não fiquem diluídos em sombras,
nem os deveres do bem cedam lugar às permissividades a pretexto de tolerância e
progresso.
O código irrefragável do "amor a Deus sobre todas as
coisas e ao próximo como a si mesmo" tem preferência a quaisquer outras
posturas, porque é uma síntese soberana da lei moisaica e do antigo direito
romano, que ainda, teoricamente, serve de base à Justiça humana.
As débeis tentativas da persistência do bem e da ordem deverão
fortalecer-se e amiudar-se tomando o terreno que foi arbitrariamente cedido às
paixões nefastas para prejuízo da harmonia social.
O homem tem o dever de recompor-se moralmente para viver
em harmonia consigo mesmo e com as leis que vigem em a Natureza, refletindo a
ordem da Criação.
Nunca se fizeram tão necessários quanto hoje os esforços pelo
bem geral das comunidades e jamais houve tão grande urgência para as lideranças
enobrecidas.
Substituir os hábitos perniciosos por comportamentos corretos;
gerar atitudes e compromissos salutares no relacionamento com as demais
criaturas; promover o trabalho realizador e educar o povo; produzir leis justas
e fomentar o respeito pela sua vigência são as tarefas do homem integrado na vera
filosofia do Cristianismo, desvestido de arbitrariedades e sofismas,
acomodações utilitaristas e dogmas absurdos, numa tentativa de restauração do
otimismo, que cede lugar à angústia e à neurose, ao mesmo tempo antecipando o
amanhã pacífico e ditoso da Humanidade.
Victor Hugo / Divaldo Franco – Livro: Roteiro de libertação
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