sábado, 27 de março de 2021

Biografia do Sr. Allan Kardec

 


É ainda sob o golpe da dor profunda que nos causou a prematura partida do venerável fundador da Doutrina Espírita, que nos abalançamos a uma tarefa, simples e fácil para suas mãos sábias e experientes, mas cujo peso e gravidade nos esmagariam, se não contássemos com o auxílio eficaz dos Espíritos bons e com a indulgência dos nossos leitores.

Quem, dentre nós, poderia, sem ser tachado de presunçoso, lisonjear-se de possuir o espírito de método e organização de que se mostram iluminados todos os trabalhos do mestre? Só a sua pujante inteligência podia concentrar tantos materiais diversos, triturá-los e transformá-los, para os espalhar em seguida, como orvalho benfazejo, sobre as almas desejosas de conhecer e de amar.

Incisivo, conciso, profundo, sabia agradar e fazer compreendido numa linguagem simples e elevada, ao mesmo tempo, tão distanciada do estilo familiar quanto das obscuridades da metafísica.

Multiplicando-se incessantemente, pudera até agora bastar a tudo. Entretanto, o cotidiano alargamento de suas relações e o contínuo desenvolvimento do Espiritismo lhe faziam sentir a necessidade de reunir em torno de si alguns auxiliares inteligentes e preparava simultaneamente a nova organização da Doutrina e de seus labores, quando nos deixou, para ir, num mundo melhor, receber a sanção da missão que desempenhara e coletar elementos para uma nova obra de devotamento e sacrifício.

Era sozinho!... Chamar-nos-emos legião e, por muito fracos e inexperientes que sejamos, nutrimos a convicção íntima de que nos conservaremos à altura da situação, se, partindo dos princípios estabelecidos e de incontestável evidência, nos consagrarmos a executar, tanto quanto nos seja possível e de acordo com as necessidades do momento, os projetos que ele pretendia realizar no futuro.

Enquanto nos mantivermos nas suas pegadas e todos os de boa vontade se unirem, num esforço comum pelo progresso e pela regeneração intelectual e moral da Humanidade, conosco estará o Espírito do grande filósofo a nos secundar com a sua influência poderosa, dado lhe seja possível suprir à nossa insuficiência e nos possamos mostrar dignos do seu concurso, dedicando-nos à obra com a mesma abnegação e a mesma sinceridade que ele, embora sem tanta ciência e inteligência.

Em sua bandeira, inscrevera o mestre estas palavras:

Trabalho, solidariedade, tolerância. Sejamos, como ele, infatigáveis; sejamos acordemente com os seus anseios, tolerantes e solidários e não temamos seguir-lhe o exemplo, reconsiderando, quantas vezes forem precisas, os princípios ainda controvertidos. Apelemos ao concurso e às luzes de todos. Tentemos avançar, antes com segurança e certeza, do que com rapidez, e não ficarão infrutíferos os nossos esforços se, como estamos persuadidos, e seremos os primeiros a dar disso exemplo, cada um cuidar de cumprir o seu dever, pondo de lado todas as questões pessoais, a fim de contribuir para o bem geral.

Sob auspícios mais favoráveis não poderíamos entrar na nova fase que se abre para o Espiritismo, do que dando a conhecer aos nossos leitores, num rápido escorço, o que foi, durante toda a sua vida, o homem íntegro e honrado, o sábio inteligente e fecundo, cuja memória se transmitirá aos séculos vindouros com a auréola dos benfeitores da Humanidade.

Nascido em Lyon, a 3 de outubro de 1804, de uma família antiga que se distinguiu na magistratura e na advocacia, Allan Kardec (Hippolyte Léon Denizard Rivail) não seguiu essas carreiras. Desde a primeira juventude, sentiu-se inclinado ao estudo das ciências e da filosofia.

Educado na Escola de Pestalozzi, em Yverdun (Suíça), tornou-se um dos mais eminentes discípulos desse célebre professor e um dos zelosos propagandistas do seu sistema de educação, que tão grande influência exerceu sobre a reforma do ensino na França e na Alemanha.

Dotado de notável inteligência e atraído para o ensino, pelo seu caráter e pelas suas aptidões especiais, já aos quatorze anos ensinava o que sabia àqueles dos seus condiscípulos que haviam aprendido menos do que ele. Foi nessa escola que lhe desabrocharam as ideias que mais tarde o colocariam na classe dos homens progressistas e livres-pensadores.

Nascido sob a religião católica, mas educado num país protestante, os atos de intolerância que por isso teve de suportar, no tocante a essa circunstância, cedo o levaram a conceber a ideia de uma reforma religiosa, na qual trabalhou em silêncio durante longos anos com o intuito de alcançar a unificação das crenças.

Faltava-lhe, porém, o elemento indispensável à solução desse grande problema.

O Espiritismo veio, a seu tempo, imprimir-lhe especial direção aos trabalhos.

Concluídos seus estudos, voltou para a França.

Conhecendo a fundo a língua alemã, traduziu para a Alemanha diferentes obras de educação e de moral e, o que é muito característico, as obras de Fénelon, que o tinham seduzido de modo particular. (...)

 “Pelo ano de 1855, posta em foco a questão das manifestações dos Espíritos, Allan Kardec se entregou a observações perseverantes sobre esse fenômeno, cogitando principalmente de lhe deduzir as consequências filosóficas.

Entreviu, desde logo, o princípio de novas leis naturais: as que regem as relações entre o mundo visível e o mundo invisível.

Reconheceu, na ação deste último, uma das forças da Natureza, cujo conhecimento haveria de lançar luz sobre uma imensidade de problemas tidos por insolúveis, e lhe compreendeu o alcance, do ponto de vista religioso.

“Suas obras principais sobre esta matéria são: O Livro dos Espíritos, referente à parte filosófica, e cuja primeira edição apareceu a 18 de abril de 1857; O Livro dos Médiuns, relativo à parte experimental e científica (janeiro de 1861); O Evangelho segundo o Espiritismo, concernente à parte moral (abril de 1864); O Céu e o Inferno, ou a Justiça de Deus segundo o Espiritismo (agosto de 1865); A Gênese, os milagres e as predições (janeiro de 1868); a Revista Espírita, jornal de estudos psicológicos, periódico mensal começado a 1o de janeiro de 1858. Fundou em Paris, a 1o de abril de 1858, a primeira Sociedade espírita regularmente constituída, sob a denominação de Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cujo fim exclusivo era o estudo de quanto possa contribuir para o progresso da nova ciência. Allan Kardec se defendeu, com inteiro fundamento, de coisa alguma haver escrito debaixo da influência de ideias preconcebidas ou sistemáticas. Homem de caráter frio e calmo, observou os fatos e de suas observações deduziu as leis que os regem. Foi o primeiro a apresentar a teoria relativa a tais fatos e a formar com eles um corpo de doutrina, metódico e regular.

“Demonstrando que os fatos erroneamente qualificados de sobrenaturais se acham submetidos a leis, ele os incluiu na ordem dos fenômenos da Natureza, destruindo assim o último refúgio do maravilhoso e um dos elementos da superstição.

“Durante os primeiros anos em que se tratou de fenômenos espíritas, estes constituíram antes objeto de curiosidade, do que de meditações sérias. O Livro dos Espíritos fez que o assunto fosse considerado sob aspecto muito diverso.

Abandonaram-se as mesas girantes, que tinham sido apenas um prelúdio, e começou-se a atentar na doutrina, que abrange todas as questões de interesse para a Humanidade.

“Data do aparecimento de O Livro dos Espíritos a fundação do Espiritismo que, até então, só contara com elementos esparsos, sem coordenação, e cujo alcance nem toda gente pudera apreender. A partir daquele momento, a doutrina prendeu a atenção dos homens sérios e tomou rápido desenvolvimento. Em poucos anos, aquelas ideias conquistaram numerosos aderentes em todas as camadas sociais e em todos os países. Esse êxito sem precedentes decorreu sem dúvida da simpatia que tais ideias despertaram, mas também é devido, em grande parte, à clareza com que foram expostas e que é um dos característicos dos escritos de Allan Kardec.

“Evitando as fórmulas abstratas da Metafísica, ele soube fazer que todos o lessem sem fadiga, condição essencial à vulgarização de uma ideia. Sobre todos os pontos controversos, sua argumentação, de cerrada lógica, poucas ensanchas oferece à refutação e predispõe à convicção. As provas materiais que o Espiritismo apresenta da existência da alma e da vida futura tendem a destruir as ideias materialistas e panteístas. Um dos princípios mais fecundos dessa doutrina e que deriva do precedente é o da pluralidade das existências(...)

Conservara-se, todavia, em estado de hipótese e de sistema, enquanto o Espiritismo lhe demonstra a realidade e prova que nesse princípio reside um dos atributos essenciais da Humanidade. Dele promana a explicação de todas as aparentes anomalias da vida humana, de todas as desigualdades intelectuais, morais e sociais, facultando ao homem saber donde vem, para onde vai, para que fim se acha na Terra e por que aí sofre.

“As ideias inatas se explicam pelos conhecimentos adquiridos nas vidas anteriores; a marcha dos povos e a da Humanidade, pela ação dos homens dos tempos idos e que revivem, depois de terem progredido; as simpatias e antipatias, pela natureza das relações anteriores. Essas relações, que religam a grande família humana de todas as épocas, dão por base, aos grandes princípios de fraternidade, de igualdade, de liberdade e de solidariedade universal, as próprias leis da Natureza e não mais uma simples teoria.

 “Em vez do postulado: Fora da Igreja não há salvação, que alimenta a separação e a animosidade entre as diferentes seitas religiosas e que há feito correr tanto sangue, o Espiritismo tem como divisa: Fora da Caridade não há salvação, isto é, a igualdade entre os homens perante Deus, a tolerância, a liberdade de consciência e a benevolência mútua.

“Em vez da fé cega, que anula a liberdade de pensar, ele diz: Fé inabalável só o é a que pode encarar face a face a razão, em todas as épocas da Humanidade. À fé, uma base se faz necessária e essa base é a inteligência perfeita daquilo em que se tem de crer. Para crer, não basta ver, é preciso, sobretudo, compreender. A fé cega já não é para este século.

É precisamente ao dogma da fé cega que se deve o ser hoje tão grande o número de incrédulos, porque ela quer impor-se e exige a abolição de uma das mais preciosas faculdades do homem: o raciocínio e o livre-arbítrio.”  (O Evangelho segundo o Espiritismo.)

Trabalhador infatigável, sempre o primeiro a tomar da obra e o último a deixá-la, Allan Kardec sucumbiu, a 31 de março de 1869, quando se preparava para uma mudança de local, imposta pela extensão considerável de suas múltiplas ocupações. Diversas obras que ele estava quase a terminar, ou que aguardavam oportunidade para vir a lume, demonstrarão um dia, ainda mais, a extensão e o poder das suas concepções.

Morreu conforme viveu: trabalhando. Sofria, desde longos anos, de uma enfermidade do coração, que só podia ser combatida por meio do repouso intelectual e pequena atividade material. Consagrado, porém, todo inteiro à sua obra, recusava-se a tudo o que pudesse absorver um só que fosse de seus instantes, à custa das suas ocupações prediletas. Deu-se com ele o que se dá com todas as almas de forte têmpera: a lâmina gastou a bainha.

O corpo se lhe entorpecia e se recusava aos serviços que o Espírito lhe reclamava, enquanto este último, cada vez mais vivo, mais enérgico, mais fecundo, ia sempre alargando o círculo de sua atividade.

Nessa luta desigual não podia a matéria resistir eternamente. Acabou sendo vencida: rompeu-se o aneurisma e Allan Kardec caiu fulminado. Um homem houve de menos na Terra; mas, um grande nome tomava lugar entre os que ilustraram este século; um grande Espírito fora retemperar-se no Infinito, onde de todos os que ele consolara e esclarecera lhe aguardavam impacientes a volta!

“A morte, dizia, faz pouco tempo, redobra os seus golpes nas fileiras ilustres!... A quem virá ela agora libertar?”

Ele foi, como tantos outros, recobrar-se no Espaço, procurar elementos novos para restaurar o seu organismo gasto por uma vida de incessantes labores. Partiu com os que serão os fanais da nova geração, para voltar em breve com eles a continuar e acabar a obra deixada em dedicadas mãos.

O homem já aqui não está; a alma, porém, permanecerá entre nós. Será um protetor seguro, uma luz a mais, um trabalhador incansável que as falanges do Espaço conquistaram. Como na Terra, sem ferir a quem quer que seja, ele fará que cada um lhe ouça os conselhos oportunos; abrandará o zelo prematuro dos ardorosos, amparará os sinceros e os desinteressados e estimulará os tíbios. Vê agora e sabe tudo o que ainda há pouco previa! Já não está sujeito às incertezas, nem aos desfalecimentos e nos fará partilhar da sua convicção, fazendo-nos tocar com o dedo a meta, apontando-nos o caminho, naquela linguagem clara, precisa, que o tornou aureolado nos anais literários.

Já não existe o homem, repetimo-lo. Entretanto, Allan Kardec é imortal e a sua memória, seus trabalhos, seu Espírito estarão sempre com os que empunharem forte e vigorosamente o estandarte que ele soube sempre fazer respeitado.

Uma individualidade pujante constituiu a obra. Era o guia e o farol de todos. Na Terra, a obra substituirá o obreiro. Os crentes não se congregarão em torno de Allan Kardec; congregar-se-ão em torno do Espiritismo, tal como ele o estruturou e, com os seus conselhos, sua influência, avançaremos, a passos firmes, para as fases ditosas prometidas à Humanidade regenerada.

Revista Espírita – maio/1869

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