quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

O progresso na imortalidade

 

Embora a humanidade avance pouco a pouco na estrada do progresso, pode-se dizer que a imensa maioria de seus membros marcha através da vida como em meio de uma noite obscura, ignorando de onde vem, não sabendo para onde vai, não tendo jamais sonhado com o objetivo real da existência.

Espessas trevas dominam a razão humana; os raios destes poderosos focos, que são a justiça e a verdade, só chegam a ela pálidos, enfraquecidos e insuficientes para aclarar os caminhos sinuosos por onde as inúmeras legiões seguem em marcha, para fazer brilhar a seus olhos o objetivo ideal e distante.

Ignorante de seus destinos, indeciso entre o preconceito e o erro, o homem maldiz, por vezes, a vida. Desfalecendo ao peso do seu fardo, lança sobre seus semelhantes a causa das provas que ele engendra e sofre, muitas vezes por sua imprevidência.

Revoltado contra Deus, que ele acusa de injusto, em sua loucura e seu desespero chega mesmo, algumas vezes, a desertar do combate salutar, da luta que só pode fortificar sua alma, aclarar seu julgamento, prepará-lo para trabalhos de ordem mais elevada.

Por que é assim? Por que o homem desce frágil e desarmado na grande arena onde se trava, sem tréguas e sem descanso, a eterna e gigantesca batalha? É que esse globo terrestre é simplesmente um dos degraus inferiores da escala dos mundos e nele moram apenas espíritos novos, isto é, almas nascidas recentemente com a razão.

A matéria reina soberana em nosso mundo e curva sob seu jugo até os melhores dentre nós; limita nossas faculdades, paralisa nossos anseios para o bem e nossas aspirações para o ideal.

Assim, para discernir o porquê da vida, para conhecer sua razão de ser, para entrever a lei suprema que rege as almas e os mundos é preciso saber libertar-se dessas pesadas influências, liberar-se das preocupações de ordem material, de todas essas coisas passageiras e volúveis que acobertam nosso espírito, dificultando nossos julgamentos. Somente nos elevando algumas vezes pelo pensamento, acima dos próprios horizontes da vida, fazendo abstração do tempo e do espaço e planando, de certa forma, acima dos pormenores da existência, é que perceberemos a verdade.

Com um esforço de vontade, abandonemos por um instante a Terra e subamos essas encostas sublimes. Do alto dos cumes intelectuais se desenrolará, para nós, o imenso panorama dos tempos sem fim e dos espaços sem limite. Do mesmo modo que o soldado perdido na luta só vê confusão em seu derredor, enquanto que o general, cujo olhar alcança todas as peripécias da batalha, calcula e prevê seus resultados; da mesma forma que o viajante, perdido nas dobras do terreno, subindo a montanha, pode vê-las se fundir numa planície grandiosa, assim a alma humana, dos cumes onde ela plana, longe dos ruídos da Terra, longe dos recantos obscuros, descobre a harmonia universal. O que embaixo lhe parecia confuso, inexplicável e injusto, visto do alto se liga e se aclara.

As sinuosidades da existência se endireitam. Tudo se une, tudo se encadeia. Ao espírito deslumbrado aparece a ordem majestosa que regula o curso das existências e a marcha dos universos.

Dessas alturas iluminadas, a vida não é mais, aos nossos olhos, como aos da multidão, a busca vã de satisfações efêmeras, porém um meio de aperfeiçoamento intelectual, de elevação moral, uma escola onde se aprende a doçura, a paciência e o dever.

Esta vida, para ser eficaz, não pode ser isolada. Fora de seus limites, além do nascimento e da morte, vemos, numa espécie de penumbra, desenrolar-se uma multidão de existências através das quais, à custa do trabalho e do sofrimento, conquistamos, peça por peça, pedaço por pedaço, o pouco de saber e de qualidades que possuímos e pelos quais também conquistaremos o que nos falta: uma razão perfeita, uma ciência sem limites e um amor infinito por tudo quanto vive.

A imortalidade, semelhante a uma cadeia sem fim, se desenrola para cada um de nós na imensidade dos tempos. Cada existência é um elo que se liga, para trás e para frente, em uma cadeia distinta, a uma vida diferente, porém solidária com as outras.

O futuro é a consequência do passado e, de degrau em degrau, o ser se eleva e cresce. Artífice de seus próprios destinos, o homem, livre e responsável, escolhe seu caminho e se essa rota é difícil, as quedas que terá, os calhaus e os espinhos que irão dilacerá-lo terão como efeito desenvolver sua experiência e fortificar sua razão nascente.

A lei suprema do mundo é, portanto, o progresso incessante, a ascensão dos seres para Deus, fonte das perfeições. Das profundezas do abismo, das mais rudimentares formas da vida, por uma rota infinita e com o auxílio de transformações sem conta, nós nos aproximamos dele. No fundo de cada alma o Eterno colocou o germe de todas as faculdades e de todas as potências; cabe-nos fazê-las eclodir por nossos esforços e por nossas lutas!

Encarado por esses aspectos novos, nosso progresso, nossa vindoura felicidade é obra nossa e a graça não tem mais razão de ser, pois a justiça brilha afinal sobre o mundo, porque se todos lutamos e sofremos, todos seremos salvos.

Igualmente se revela aqui, em toda a sua grandeza, o papel da dor e sua utilidade para o progresso dos seres. Cada globo que rola no espaço é uma vasta oficina onde a substância das almas é incessantemente trabalhada.

Assim como o grosseiro mineral, sob a ação do fogo e das águas, se transforma, pouco a pouco, em um puro metal, também a alma humana, sob os pesados martelos da dor, se transforma e se fortifica. É no meio das provas que se forjam os grandes caracteres. A dor é a suprema purificação, é a fornalha onde se fundem todas as escórias impuras que corrompem a alma: o orgulho, o egoísmo e a indiferença.

É a única escola onde se afinam as sensações delicadas, onde se aprendem a piedade e a resignação estoicas. Os gozos sensuais, ligando-nos à matéria, retardam nossa elevação, enquanto que o sacrifício e a abnegação nos desligam, por antecipação, dessa espessa ganga e nos preparam para novas etapas e para uma ascensão mais alta. Assim a alma se eleva na escalada magnífica dos mundos e percorre o campo sem limites dos espaços e dos tempos.

A cada conquista sobre as paixões, a cada passo à frente, engrandecida e purificada, ela vê seus horizontes se alargarem e percebe, cada vez mais distintamente, a grande harmonia das leis e das coisas e nela participa de uma forma bem estreita e mais efetiva.

Então para ela o tempo se apaga e os séculos se escoam como segundos. Unida a suas irmãs, companheiras da erraticidade, ela prossegue sua marcha eterna no seio de uma luz cada vez maior.

De nossas buscas e de nossas meditações se destaca assim uma grande lei: a pluralidade das existências da alma. Nós vivemos antes do nascimento e viveremos depois da morte e esta lei nos dá a chave de problemas até agora insolúveis, pois somente ela explica a desigualdade das condições e a infinita variedade dos caracteres e das aptidões. Conhecemos ou conheceremos, sucessivamente, todas as fases da vida terrestre e percorreremos todos os meios. No passado, nós éramos como esses selvagens que povoam os continentes atrasados; no futuro, nós nos poderemos elevar à grandeza desses gênios imortais, desses espíritos gigantes que, semelhantes a faróis luminosos, iluminam a marcha da humanidade.

O tempo e o trabalho são os dois elementos de nosso progresso e a lei da reencarnação mostra, de uma forma brilhante, a soberana justiça que reina sobre todos os seres. Passo a passo, nos forjamos e quebramos, nós próprios, nossos grilhões. As provas terríveis, que alguns dentre nós sofrem, são a consequência de uma conduta do passado.

O déspota renasce escravo; a mulher altiva e vaidosa por sua beleza tomará um corpo enfermo e sofredor; o preguiçoso voltará como servo, curvado sob uma tarefa ingrata, e aquele que fez sofrer, por seu turno, sofrerá. É inútil procurar o inferno nas regiões desconhecidas e distantes. O inferno está em torno de nós e se oculta nas dobras ignoradas da alma culpada, na qual só a expiação pode fazer cessar as dores.

Entretanto, dirão, se outras vidas precederam o nascimento, por que perdemos sua lembrança e como poderemos resgatar com sucesso faltas esquecidas?

A lembrança! Ela não seria mais que um terrível grilhão atado aos nossos pés! Mal saída das idades da fúria, escapando, ontem, da bestialidade feroz, qual deve ser esse passado de cada um de nós? Pelas etapas vencidas, quantas lágrimas temos feito correr e quanto sangue temos derramado! Conhecemos o ódio e praticamos a injustiça. Que fardo moral essa longa perspectiva de faltas para um pobre espírito já débil e cambaleante! Depois, a lembrança de nosso próprio passado estaria ligada, de uma forma íntima, à lembrança do passado de outras pessoas. Que desagradável situação para o culpado, marcado assim com o ferro em brasa pela eternidade!

E os ódios, os erros se perpetuariam pela mesma razão, criando divisões profundas e eternas no seio dessa humanidade já tão sacrificada. Sim, Deus fez bem em apagar de nossos frágeis cérebros a lembrança de um passado perigoso. Após termos bebido as águas do Léthé, renascemos numa nova vida.

Uma educação diferente, uma civilização mais ampla faz espantar os fantasmas que perturbaram outrora nosso espírito.

Aliviados dessa bagagem pesada, avançamos com passo mais rápido pelas sendas que nos são abertas.

Entretanto esse passado não está tão extinto que não lhe possamos entrever alguns vestígios. Se, livres das influências exteriores, descermos ao fundo de nosso ser, se analisarmos, com cuidado nossas preferências e nossas aspirações, descobriremos coisas que nada em nossa atual existência e na educação recebida pode explicar.

Partindo daí, chegaremos a reconstituir esse passado, senão em seus pormenores, pelo menos em suas grandes linhas. Quanto às faltas, ocasionando, nesta vida, uma expiação consentida, ainda que apagadas momentaneamente aos nossos olhos, sua causa primária não permanece menos visível para sempre, isto é, nossas paixões, nosso caráter ardente que novas encarnações terão como meta curvar e domar.

Assim, pois, se deixamos sob o esquecimento as mais perigosas lembranças, carregamos, pelo menos, conosco o fruto e as consequências dos trabalhos recentemente conquistados, isto é, uma consciência, um julgamento e um caráter talhados por nós próprios. O que chamamos desigualdade não é outra coisa senão a herança intelectual e moral que as vidas passadas nos legam.

Cada vez que se abrem, para nós, as portas da morte, quando, separada do jugo material, nossa alma escapa de sua prisão de carne para entrar novamente no império dos espíritos, então o passado reaparece inteiramente diante dela. Uma após outra, na rota percorrida, ela revê suas existências: as quedas, as conquistas e as marchas rápidas. Ela se julga a si mesma, medindo o caminho percorrido, e no espetáculo de seus sucessos ou de suas vergonhas, colocados diante dela, encontra seu castigo ou sua recompensa.

Sendo o aperfeiçoamento intelectual e moral da alma o objetivo da vida, qual condição e qual meio nos convém melhor para conseguir esse objetivo? O homem pode trabalhar para essa perfeição em todas as condições e em todos os meios sociais, porém trabalhará mais vitoriosamente em determinadas condições.

A riqueza proporciona ao homem poderosos meios de estudo e lhe permite dar a seu espírito uma cultura mais desenvolvida e mais perfeita; ela põe em suas mãos facilidades maiores para aliviar seus irmãos infelizes e participar de tarefas úteis para lhes melhorar a sorte. Todavia são raros os que consideram como um dever trabalhar para aliviar a miséria ou pela instrução e melhoria de seus semelhantes.

A riqueza esteriliza, muitas vezes, o coração humano; extingue essa chama interior, esse amor ao progresso e às melhorias sociais, que aquece todas as almas generosas; coloca uma barreira entre os poderosos e os humildes e isola, numa esfera, os deserdados desse mundo, onde, por consequência, suas necessidades e seus males são ignorados e desconhecidos.

A miséria também tem seus horrorosos perigos: a degradação dos caracteres, o desespero e o suicídio, mas enquanto a riqueza nos torna indiferentes e egoístas, a pobreza, aproximando-nos dos humildes, nos faz compartilhar de suas dores. É preciso ter sofrido para avaliar o sofrimento dos outros. É então que os poderosos, no meio das honras, se invejam entre si e procuram rivalizar, em ostentação, os pequenos, aproximados pela necessidade e que vivem, por vezes, em uma tocante confraternização.

Olhai os pássaros de nosso país durante os meses de inverno, quando o céu está sombrio, quando a terra está coberta com um branco manto de neve; agarrados uns aos outros, na borda de um telhado, eles se aquecem mutuamente, em silêncio. A necessidade os une. Contudo, nos belos dias, com o Sol resplandecendo e a provisão abundante, eles piam quanto podem, perseguem-se, batem-se e se machucam. Assim é o homem.

Dócil, afetuoso para com seus semelhantes nos dias de tristeza, a posse dos bens materiais muitas vezes o torna esquecido e insensível.

Uma condição modesta faz mais bem ao espírito desejoso de progredir, de adquirir as virtudes necessárias para seu progresso moral. Longe do turbilhão dos prazeres fugazes, ele julgará melhor a vida, dará à matéria o que é necessário para a conservação de seus órgãos, porém evitará cair em hábitos perniciosos, tornar-se presa das inúmeras necessidades factícias que são o flagelo da humanidade. Ele será sóbrio e laborioso, contentando-se com pouco, apegando-se aos prazeres da inteligência e às alegrias do coração.

Fortificado assim contra os assaltos da matéria, o sábio, sob a pura luz da razão, verá resplandecer seu destino. Esclarecido quanto ao objetivo da vida e ao porquê das coisas, ficará firme e resignado diante da dor, que ele aproveitará para sua depuração e seu progresso.

Enfrentará a provação com coragem, sabendo que ela é salutar, que ela é o choque que rasga nossas almas e que só por este rasgão derrama tudo quanto de fel e de amargura há em nós.

E se os homens se riem dele, se ele é vítima da intriga e da injustiça, aprenderá a suportar, pacientemente, seus males, lançando seus olhares para vós, oh! Nossos irmãos mais velhos, para Sócrates bebendo a cicuta, para Jesus crucificado e para Joana na fogueira. Haverá consolação na lembrança de que os maiores, os mais virtuosos e os mais dignos sofreram e morreram pela humanidade.

Após uma existência bem preenchida, chegará a hora solene e é com calma, sem desgostos, que virá a morte. A morte que os homens cercam com um sinistro aparato, a morte, espantalho dos poderosos e dos sensuais e que para o pensador austero é a libertação, a hora da transformação, a porta que se abre para o império luminoso dos espíritos.

Esse pórtico das regiões extraterrestres será penetrado com serenidade, se a consciência, separada da sombra da matéria, erguer-se como um juiz, representante de Deus, perguntando?

“Que fizeste da vida”? E ele responder: “Lutei, sofri, amei!

Ensinei o bem, a verdade e a justiça; dei a meus irmãos o exemplo do correto e da doçura; aliviei as dores dos que sofrem e consolei os que choram. Agora, que o Eterno me julgue, pois estou em suas mãos”!

Homem, meu irmão, tem fé em teu destino, porque ele é grande. Confia nas amplas perspectivas, porque ele põe em teu pensamento a energia necessária para enfrentar os ventos e as tempestades do mundo. Caminha, valente lutador, sobe a encosta que conduz a esses cimos que se chamam virtude, dever e sacrifício. Não pares no caminho para colher as florzinhas do campo, para brincar com os calhaus dourados. Para frente, sempre adiante.

Olha nos esplêndidos céus esses astros brilhantes, esses sóis incontáveis que carregam, em suas evoluções prodigiosas, brilhantes cortejos de planetas. Quantos séculos acumulados foram precisos para formá-los e quantos séculos serão precisos para dissolvê-los.

Pois bem, chegará um dia em que todos esses sóis serão extintos, ou esses mundos gigantescos desaparecerão para dar lugar a novos globos e a outras famílias de astros emergindo das profundezas. Nada do que vês hoje existirá. O vento dos espaços terá varrido para sempre a poeira desses mundos, porém tu viverás sempre, prosseguindo tua marcha eterna no seio de uma criação renovada incessantemente. Que serão então, para tua alma depurada e engrandecida, as sombras e os cuidados do presente? Acidentes fugazes de nossa caminhada, que só deixarão, no fundo de nossa memória, lembranças tristes e doces.

Diante dos horizontes infinitos da imortalidade, os males do passado e as provas sofridas serão qual uma nuvem fugidia no meio de um céu sereno.

Considera, portanto, no seu justo valor, as coisas da Terra.

Não as desdenhes porque, sem dúvida, elas são necessárias ao teu progresso e tua obra é contribuir para o seu aperfeiçoamento, melhorando a ti mesmo, mas que tua alma não se agarre exclusivamente a elas e que busque, antes de tudo, os ensinamentos nela contidos.

Graças a eles compreenderás que o objetivo da vida não é o gozo, nem a felicidade, porém o desenvolvimento por meio do trabalho, do estudo e do cumprimento do dever, dessa alma, dessa personalidade que encontrarás além do túmulo, tal como a tenhas feito, tu mesmo, no curso desta existência terrestre.

 

Leon Denis – Livro: O Progresso

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